O Partido Arquitetônico: A terra crua
O decorrer da história da humanidade nos legou, em diversos continentes e épocas, inegáveis vestígios de edificações erigidas em terra crua capazes de atestar a ancestralidade e a universalidade deste método construtivo que subsiste ainda hoje em alguns locais remotos do globo como única alternativa construtiva que resulta da experiência coletiva de suas sociedades.
Construções ancestrais em terra crua são vernáculas. Resultam da necessidade de proteção e abrigo do homem correlacionada aos recursos naturais disponíveis em seu meio físico. É a oferta e acessibilidade aos elementos naturais, passíveis de serem utilizados como materiais construtivos que determinam os padrões formais e funcionais das edificações. As técnicas construtivas adotadas são exercidas por regras pré-estabelecidas por um conhecimento adquirido ao longo de um tempo de convívio, observação e exploração das possibilidades produtivas do território apropriado.
A terra é o mais acessível dos elementos da natureza e o mais inerente ao seu lugar de origem, o que concerne às edificações decorrentes de seu uso uma composição final que resulta das características geográficas de seu sítio de implantação, submetidas aos elementos imateriais da sociedade que as originaram. Por esta razão, edificações vernáculas só se sustentam quando produtos da experiência coletiva de uma sociedade em determinado ambiente e tempo histórico. São construções que apresentam feição única e identidade própria, como podemos constatar ao analisarmos o uso contemporâneo da terra em algumas comunidades isoladas.
Em São Paulo o Vale do Ribeira mantém exemplares que são admiráveis pela persistência dos partidos adotados e pela repetição das técnicas construtivas, não apresentam o mesmo rigor formal e técnico de antes, entretanto, alguns elementos estão presentes como se fossem rascunhos de um projeto de moradia colonial, como: o puxadinho da cozinha, o jirau para armazenar, secar carnes e mesmo dormir, o porão, o terreiro de trabalho com a casa de farinha, o engenho de cana, os pilões, as taipas dos fogões que são de vários tipo, de barranco, de torrar farinha, de ferver rapadura e os de assar barro. Objetos que compõem, juntamente com os elementos construtivos, a habitação de nossos caboclos, quilombolas ou ribeirinhos, depositários em nosso estado da prática de se construir com terra.
No caso, da propriedade de Ismael Júlio da Silva, observamos uma justaposição entre tempo e espaço, uma paridade entre o uso da edificação e seu programa original.
Situação que se manteve até 1997, o que é uma peculiaridade que somente poderíamos encontrar nesta região do Estado de São Paulo, marcada por fatores diversos que favoreceram a manutenção, por mais tempo, de um modo de vida fundamentado na época da colonização paulista. Desta maneira, a obra arquitetônica deixa de ser uma amostra de uma realidade do séc. XIX e passa a ser a própria realidade.
A interpretação do conjunto arquitetônico, deste modo, só se realiza através do elemento humano, o mantenedor desta realidade anacrônica, capaz de perpetuar práticas de subsistências e fazeres ancestrais que nos remete aos primeiros paulistas, ao modo de vida bandeirista.
Quando iniciamos a restauração da edificação, ela tinha acabado de sofrer grandes danos devido a uma enchente do rio Ribeira de Iguape.
O objetivo da intervenção era proporcionar a revitalização, não apenas material do edifício, mas, principalmente, de seu uso, mantendo as características inerentes ao seu programa inicial de unidade agrícola, moradia e comercio.
Hoje, além de moradia, os espaços que eram destinados, originalmente, ao pernoite de viajantes, cumprem a mesma função de hospedagem.